Desde Zumbi branco (1932),
dirigido por Victor Halpering e estrelado por Bela Lugosi, a figura do zumbi
frequenta os filmes hollywoodianos. A partir daí algumas convenções se
estabelecem, como a representação do morto vivo como um ser escravizado por um
senhor, uma relação construída por meio da magia ou da feitiçaria. Além desta
relação entre senhor e escravo, o filme inclui outros elementos oriundos da
literatura de horror anterior à sociedade de massas como a divisão dos
personagens basicamente entre uma aristocracia ociosa e trabalhadores sem
direitos, explorados no campo ou em uma estrutura fabril muito primitiva, além
da composição do figurino e do cenário da literatura gótica do século XIX.
Assim como o monstro de Frankenstein, o zumbi pode ser lido como uma parábola
do trabalhador explorado nas economias modernas industriais, bem como do
trabalhador nativo de suas colônias.
Zumbi branco surge dentro das
convenções de um filme de horror, onde encontramos o elemento sobrenatural, ou
inexplicável, o castelo terrível, num precipício à beira do mar, a heroína ingênua
dominada pelo vilão, a atmosfera de mistério e suspense e o herói enlouquecido pela
pressão de uma situação incompreensível
Resumidamente, é a história de um jovem casal apaixonado, Neil (John
Harron) e Madeleine (Madge Bellamy), que aceita o convite de Beaumont (Robert
Frazer), um homem que conhecem num trem, para visitar sua mansão no Haiti, e
ali realizarem sua cerimônia de casamento. Na verdade, Beaumont está apaixonado
por Madeleine e pediu ajuda a Legendre (Bela Lugosi) para conquistá-la.
Legendre é um feiticeiro que revive mortos para obter mão de obra escrava.
Usando um cachecol de Madeleine, Legendre
faz um feitiço vodu, matando-a e trazendo-a de volta dos mortos para se
entregar a Beaumont. Entretanto, Beaumont logo percebe que não pode se
satisfazer com uma mulher zumbi, sem alma, sem vontade e sem desejo, e se
arrepende. Enquanto isto, Neil, o noivo, entra em profunda depressão após o
enterro da amada e mergulha na bebida. Quando descobre que Madeleine se tornou
uma morta-viva, segue até o castelo de Legendre para se vingar e salvar a
noiva.
Vale ressaltar outros elementos do filme,
que ajudam a estabelecer um contexto pré-moderno e pré-industrial para a trama:
O casal protagonista, apesar da menção à modernidade nova-iorquina, chega à
mansão de Beaumont à noite, numa carruagem, por uma sombria estradinha de terra.
Em um determinado ponto do caminho encontram um grupo de homens e mulheres
vestidos como trabalhadores do campo, elas com lenços na cabeça e eles de
chapéu de palha, enterrando um morto em pleno leito da estrada. E os zumbis de
Legendre, quase todos negros ou mestiços, trabalham na plantação de cana, ou na
fábrica de açúcar, em que o pouco maquinário é movido pelos seus corpos. Assim
se estabelecem as convenções da fase clássica deste gênero: indivíduos
despertados da morte por um senhor perverso e cruel, sem alma e sem vontade
própria, movendo-se num cenário que se alterna entre castelos sombrios ou ricas
propriedades rurais e plantações de cana, em meio ao qual acompanhamos uma
heroína branca perseguida pelo vilão e salva pelo seu hesitante herói.
Onze anos mais tarde, o diretor Jacques
Tourner lança A morta-viva, mais uma
vez combinando as plantações caribenhas, o vodu e uma mulher branca
transformada em zumbi. Aqui, a história apresenta Betsy (Frances Dee), uma
jovem enfermeira canadense que vai às Índias Ocidentais para tratar da Jessica Holland
(Christine Gordon), esposa de Paul Holland (Tom Conway), dono de uma fazenda de cana de açúcar. Jessica
parece sofrer de um tipo de paralisia mental surgida depois de um episódio de
febre. Segundo o doutor Maxwell (James Bell), a febre teria danificado a medula
espinhal, deixando a paciente sem a capacidade de fazer nada por vontade
própria. Os outros membros da família Holland são o meio-irmão Wesley Rand e a
senhora Rand (Edith Barret), médica e mãe de Paul e
Wesley.
Logo, Betsy se apaixona por Paul e num
gesto extremamente romântico e altruísta decide fazer todo o possível para
curar sua esposa, acreditando que ele ainda a ama. Depois do fracasso de um
tratamento médico radical conduzido pelo Dr. Maxwell, ela fica sabendo, por
meio de Alma (Theresa Harris), empregada da casa, da possibilidade de cura de
Jessica através de um ritual vodu, realizado por uma feiticeira da comunidade negra
da ilha. Acompanhada de Alma, Betsy leva sua paciente até o centro vodu sem
autorização da família. Lá, chocada, descobre que a feiticeira vodu é a própria
Senhora Rand, que se justifica dizendo recorrer ao vodu somente para convencer
os ilhéus a tomarem seus medicamentos, mas também admite que Jessica jamais
poderá ser curada.
A confusão toda envolvendo os nativos e o vodu
atrai a atenção da polícia local e pressionada diante de seus familiares, a
senhora Rand admite ter matado Jessica e a transformado em zumbi, para impedir
que ela traísse Paul e fugisse com seu meio-irmão Wesley.
Por fim, o próprio Wesley mata Jessica
definitivamente, deixando seu corpo para ser encontrado na praia pelos negros da
ilha.
Assim como em Zumbi branco, o filme de Jacques Tourner faz seguidas referências à escravidão. Em diferentes
momentos da trama personagens se referem lugubremente a uma escultura em
madeira de São Sebastião atravessado por flechas no jardim da propriedade,
explicando que aquela era a figura de proa do navio negreiro que havia trazido
os escravos da família Holland.
Mas os filmes de zumbi sofrerão enormes transformações a partir de A noite dos mortos vivos. Filmado por
George Romero em preto e branco e com baixo orçamento, o filme se concentra num
grupo de sete personagens que se isolam numa casa de fazenda abandonada, depois
que os mortos começam a sair de suas sepulturas e a vagar por todo o país
devorando os vivos. Ali passarão a noite enquanto enfrentam os zumbis do lado
de fora e lidam com os conflitos que surgem em meio ao próprio grupo.
Com as novas características
atribuídas à figura do zumbi, este personagem se transforma num dos mais
populares e bem sucedidos dos subgêneros dos filmes de terror. Agora, os mortos
vivos não são mais ressuscitados por métodos mágicos, como no vodu; não são
mais corpos sem vontade própria e escravizados pelo vilão da trama, mas seres
movidos por algum impulso interno e incontível, de origem nunca bem explicada,
alheios a qualquer ordem externa. A noite
dos mortos vivos enfatiza a ausência de uma explicação mágica, ou mesmo de
qualquer explicação para o aparecimento dos zumbis, e substitui uma vontade
regida por um senhor por outra vontade, agora de origem desconhecida, cujo
impulso se apresenta como uma fome insaciável pela carne de humanos vivos.
O filme de Romero também introduz outras novidades significativas. Por
exemplo, o cenário deixa de exibir castelos terríveis e canaviais sombrios e agora
os mortos vivos passam a assombrar a bem cuidada zona rural estadunidense
enquanto fora das salas de exibição a sociedade vive os protestos contra a
guerra do Vietnã, o movimento hippie, a invenção da pílula anticoncepcional e o
amor livre, os assassinatos de John Kennedy e de Martin Luther King Jr e a
chega à Lua. A década de 1960 também pode ser identificada com a chegada
definitiva da sociedade estadunidense na modernidade e com a tradução do sonho
americano em sonho de consumo. A modernidade também é indicada no filme pela
presença da televisão e do rádio.
Produção de baixo orçamento, em preto e branco quando o filme em cores
já predominava, inclusive nos filmes de terror, A noite dos mortos vivos rendeu grande bilheteria e uma recepção
polêmica. Para muitos o filme trazia uma mensagem antirracista, pela escolha de
Duane Jones como o primeiro ator negro a protagonizar um filme de horror. Ben,
seu personagem, dotado das qualidades do herói hollywoodiano, é o único que
sobrevive ao longo da noite na casa abandonada. Mesmo assim, na manhã seguinte
é assassinado com um tiro na cabeça por um dos homens do xerife. Na sequência
final vemos fotos de jornal onde seu corpo aparece sendo carregado como o de um
morto vivo.
A noite dos mortos vivos traz elementos que provocam
diferentes leituras, como a morte de todo o elenco principal, inclusive da
heroína, mas a principal transformação foi fazer do aparecimento do zumbi um
evento sem explicação clara, dotando, assim, os novos mortos vivos de uma
vontade própria, ou, mais exatamente, de uma vontade sem controle. Este novo
zumbi que se move sem qualquer comando passa agora a se prestar às mais
variadas metáforas nos inúmeros filmes que se seguiram, mas neste breve espaço
vamos nos concentrar rapidamente sobre aquela que possivelmente foi a metáfora que
mais se fixou entre o público e a mais reforçada pelo próprio George Romero: o
zumbi como o individuo desumanizado e dominado pela lógica da sociedade de
consumo .
Em outras palavras, a partir de
George Romero os filmes de zumbi são atualizados para uma representação social
mais contemporânea, fortemente focado na lógica consumista das sociedades
ocidentais, e particularmente a estadunidense. Dez anos depois, com O despertar dos mortos (1978), Romero
faz ainda mais explícita sua crítica ao consumismo ao colocar um shopping
center como refúgio dos personagens principais, onde ficam sitiados, pois é
para lá que se dirige a massa de zumbis, supostamente movidos pelo imperioso hábito
de consumo que os dominava em vida.
Enfim, o zumbi de George Romero é por definição um típico símbolo da
sociedade de consumo: o que o move é o desejo irrefreável de consumir, desejo
este que se apresenta como um impulso irracional e incontível, que nada
acrescenta a sua existência, já que ele está morto. Desprovido de humanidade,
ele retém o impulso consumista como último traço do que um dia foi. Movido
apenas pelo desejo de consumir, o zumbi nada produz, gerando um desequilíbrio
que levado ao limite significaria a própria destruição da sociedade humana.
Em 2009, com a comédia Zumbilândia,
o diretor Ruben Fleischer leva o comportamento dos zumbis de Romero ao seu
limite lógico ao criar uma sociedade onde quase todo mundo no planeta se
transformou em morto vivo. Nesta comédia apocalíptica, as pessoas se transformaram
em zumbis após consumir hambúrgueres contaminados por um vírus, uma explicação
tão vaga e absurda quanto a radiação espacial de A noite dos mortos vivos.
Permanecem como humanos apenas quatro personagens: Columbus (Jesse Eisenberg),
um jovem nerd antissocial; Tallahassee (Woody Harreslson), ex dono de oficina
obsecado por encontrar um twinky (um doce industrializado )ainda no prazo de
validade; e a jovem e sexy Wichita (Emma Stone) e sua irmãzinha adolescente
Little Rock (Abigail Breslin).
O filme de Fleischer chega às telas logo depois da eclosão da crise
financeira mundial, disparada pela quebra do banco Lehman Brothers, nos Estados
Unidos, em setembro de 2008. Essa crise, que ainda se arrasta por todo o mundo
desenvolvido sem que se aviste seu fim, é resultado justamente de uma lógica
econômica e cultural onde na mesma medida em que se abandona a produção e o
trabalho, se privilegia o consumo. Uma crise que destruiu a “normalidade”
existente e que não permite vislumbrar qualquer nova “normalidade” a ser
alcançada.
O cenário de Zumbilândia é um
mundo de mercadorias em abundancia e sem consumidores (nem os zumbis tem mais
quem comer), como os novos pobres que não cessam de surgir nos Estados Unidos e
Europa. No filme o desejo de retorno à antiga normalidade aparece na procura
obsessiva de Tallahassee por um twinky; ao mesmo tempo, a futilidade da antiga normalidade
fica bem ilustrada nas várias cenas em que os quatro protagonistas se divertem
simplesmente destruindo mercadorias em exposição.
Nos filmes de George Romero sempre há uma volta à normalidade ao final
da trama. De um modo ou de outro, seja pelas forças do Estado, seja pela
promessa de uma nova sociedade, como em Terra
dos mortos (2005), no universo de Romero sempre persiste uma esperança de
normalidade. O universo de Fleischer não oferece mais essa possibilidade. Quando
a lógica do hiperconsumo é levada ao seu limite, onde a relação entre as
pessoas é substituída pela relação entre os objetos, tudo o que resta são
pessoas vazias a quem seguir consumindo não serve de mais nada. Sem que se
escape desta lógica não há futuro para a sociedade. Do mesmo modo, sem ter para
onde voltar, os personagens de Zumbilândia
se ocupam cruzando um país vazio e assombrado até atingirem seu objetivo:
brincar num grande parque de diversão na costa oeste. Ao final, alcançado esse
objetivo, nada lhes resta. Como consolo, reconhecem-se como família. Mas uma família
que não tem o que fazer, nem para onde ir. Zumbilândia
termina com uma mal disfarçada admissão de que não há mais um futuro.
Entretanto, sempre haverá um futuro. Por mais que a crise mundial siga
sem um claro horizonte e sem solução, o mundo segue existindo e as pessoas,
vivendo. E é como uma alternativa utópica às distopias de Romero e de Fleischer
que aparece em 2013 Meu namorado é um
zumbi (Warm bodies), dirigido por
Johnatan Levine. Lançado cinco anos depois da eclosão da crise, o filme de
Levine situa seus zumbis num mundo pós-apocalíptico semelhante àquele de Zumbilândia, com um punhado de seres
humanos lutando para sobreviver num mundo tomado por zumbis.
Se o filme de Fleischer termina sem um futuro para a humanidade, novas
transformações no universo de Levine reabrem a possibilidade de um futuro menos
estéril; se o primeiro é uma distopia, o segundo é uma utopia. E a utopia do
ressurgimento de um mundo reumanizado precisa de um zumbi que fale.
A trama começa com as reflexões de um protagonista incapaz de lembrar o
próprio nome, sem memória do passado e... morto. Ele não consegue realmente
falar, mas ouvimos seus pensamentos. “R” (Nicholas Hoult), nome que receberá
mais adiante da heroína, tem consciência de ser um morto vivo. Passa a maior
parte do tempo perambulando por um aeroporto em meio a uma multidão de outros
zumbis. Agora existe um segundo tipo de zumbi, os chamados esqueletos, em
estado mais avançado de decomposição, de feições escuras e sinistras,
extremamente agressivos e devoradores de qualquer coisa que tenha um coração
pulsante; zumbis que aparentemente perderam seus últimos traços de humanidade.
Esses dois tipos de mortos vivos dominam o planeta.
Os humanos que restaram vivem protegidos por altos muros rodeando parte
do centro de Nova York. No interior dos muros levam uma vida com poucas
esperanças, liderados por uma instituição militar, enviando grupos armados de
quando em quando para recolher medicamentos e outras necessidades do lado de
fora. E é em uma dessas saídas que Julie (Teresa Palmer) e seu grupo são
surpreendidos por zumbis. R mata seu namorado, mas apaixona-se por ela à
primeira vista e a salva, conduzindo-a até o avião abandonado que ele habita.
Ao longo dos dias que dura essa convivência, segue-se um duplo processo de
sensibilização de Julie em relação a R e da própria humanização deste.
Eventualmente, Julie abandona R e retorna para sua casa intramuros, onde
seu pai é o comandante militar que odeia zumbis. Desolado no caminho de volta
ao aeroporto, R encontra um grupo de zumbis que, como ele, estão passando por
um processo de reumanização. Como ele, começaram a ter sonhos e não mais apenas
fragmentos da memória daqueles cujos cérebros comeram. Por conta desse processo
de voltar à vida, misteriosamente deflagrado pelo contato entre Julie e R, os
esqueletos também estão seguindo em direção à cidade sitiada, para dar fim aos
humanos e, de quebra, de todos os outros zumbis.
Já dentro da cidadela, R consegue encontrar Julie e juntos tentam, sem
sucesso, convencer seu pai (Grigio/John Malkovich) de que os zumbis estão de
algum modo se reumanizando. Na confusão que se segue zumbis e humanos se juntam
para enfrentar os esqueletos, derrotando-os. A trama termina com seres humanos
e zumbis juntos. Os muros da cidadela são derrubados. Julie e R seguem como
namorados. As copas das árvores do Central Park exibem o alaranjado do outono.
À plateia é entregue uma vaga utopia, sem uma proposição política mais clara,
mas com a promessa de que o amor a tudo vencerá. Finalmente, a sociedade de
consumo encontra sua redenção.